VER A COISA EM SI




Uma coisa se vale por ela mesma, 

pelo que ela é.

Não adianta você comparar, tentando 

justificar uma pela outra.

Se partirmos deste princípio, 

poderemos fazer uma análise 

mais precisa das coisas.

De todas as coisas.





SENSO CRÍTICO - Respostas filosóficas a uma aluna de Direito da PUC-PR

 


SENSO CRÍTICO


Uma aluna do curso de Direito da PUC-PR me procurou para responder filosoficamente algumas perguntas para discussão em grupo no seu curso. Aí vão as perguntas e as respostas:


1.     Quem manda no mundo é o senso comum?

Resposta: Senso comum é um pensamento que se torna popular, mas que não tem embasamento pelo método científico e filosófico. Este pensamento, por ser aceito sem reflexão e sem questionamento, pode transformar-se em bolha e influenciar multidões, sem qualquer garantia de verdade. Já o senso crítico passa, necessariamente pela reflexão e pelos métodos, o que dá mais segurança para sua credibilidade. Atualmente, o mundo está dividido entre uma pequena parcela que busca o senso crítico e uma grande maioria que se deixa levar pelo senso comum. Não que o senso comum esteja sempre errado, mas pelo método científico e filosófico faz-se necessário uma comprovação da verdade propalada pelo senso comum, para torná-lo aceitável e seguro. Em geral, o senso comum sempre foi predominante em nossa sociedade.

 

2.     Estamos conectados com a realidade ou com a ficção?

Resposta: A realidade implica várias camadas de visão e para apreendê-la é necessário um olhar profundo e abrangente, o que não é fácil. Dentre essas camadas podemos destacar a realidade social, psicológica, mental, educacional, cultural e não menos a influência dos meios de comunicação na leitura desta realidade, com os jogos de interesse e as versões criadas para induzir uma visão dessa realidade. Seria mais correto dizermos que vivemos numa ficção múltipla, onde diversos criadores disputam o reconhecimento de sua versão como sendo a realidade.

 

3.     Eu faço uso do meu próprio entendimento?

Resposta: Para responder esta questão, cada pessoa deve responder antes qual seu grau de interesse em aprofundar-se na busca das verdades da existência e qual seu grau de aceitação das verdades que lhe são impostas por todos os setores da sociedade, como as religiões, os meios de comunicação, a propaganda, entre outros. A partir daí, ela poderá iniciar a caminhada em busca da reflexão mais complexa sobre a existência, não deixando de saber que faz-se necessário questionar até o seu próprio entendimento, porque não pode haver barreiras nesta busca da verdade. A dúvida metódica deve incluir até os limites da própria razão e do cérebro, porque podemos estar sendo enganados por nós mesmos em nossa busca de desvendamento da verdade.

 

4.     Eu vivo em uma bolha epistêmica?

Resposta: Quem vive numa bolha epistêmica, de certa maneira, aceitou esta situação, por ignorância, ingenuidade ou anuência. Na busca de uma possível liberdade maior de pensamento e reflexão, é necessário sempre questionar o próprio saber e também as verdades que nos são impostas por todos os meios. Aquele que cisma em torno de suas ideias e conceitos pode perder a liberdade de voar, o que é imprescindível para quem busca a verdade. Nada pode impedir a caminhada de quem procura com sinceridade a verdade, nem mesmo a sua própria teimosia em torno de ideias gestadas por si mesmo.

 

5.     As “fake news” norteiam minhas decisões?

Resposta: Em primeiro lugar é necessário refletir profundamente sobre o que sejam “fake news”. Para se enquadrar algo como mentira é necessário saber qual é a verdade. Caso saibamos - o que é extremamente difícil, porque exige esforço, pesquisa, teste, análise e profunda reflexão – poderemos desconsiderar estas falsas notícias. Na verdade, vivemos num mundo onde o que interessa é o jogo de versões, em geral visando algum lucro financeiro ou aumento de poder. Neste jogo, o que acaba importando é a versão e não o fato. Portanto, várias versões nos são impostas todos os dias, de todos os lados. Precisamos compreender este jogo de interesses e nos colocarmos numa posição confortável para arejar a mente e não entrarmos neste jogo ou, se entrarmos, sabermos “remar a canoa” para o lugar que almejamos.

 

6.     Pelo que eu sou responsável?

Resposta: Cada um pode ser responsável por aquilo que quiser ser. Cabe a cada um de nós pesar as coisas pelas quais vale a pena se responsabilizar. Alguns podem optar pelos filhos, pelos pais, pelos animais de estimação, pela família, pelo grupo no qual é acolhido, mas também pode-se optar pela responsabilidade pelo meio ambiente, pelos direitos humanos, pela busca da verdade, enfim, são tantas opções que poderão ser escolhidas por cada um. Mas algumas criaturas podem também viver na irresponsabilidade total ou parcial, pouco se importando com este assunto.

 

7.     Como a minha vida pode transformar o mundo?

Resposta: A vida de cada um não transforma o mundo. Pode transformar a si próprio. Mas a partir do momento que cada um se transforma, acaba acrescentando uma transformação a mais no mundo. Assim, se o número de seres transformados vai aumentando, a transformação será cada vez maior. Mas esta transformação pode ser para um sentido ou para outro. Nem sempre a transformação pode ser positiva. Uma sociedade que está se transformando para o obscurantismo, por exemplo, pode não ser uma boa opção. Tudo vai depender da visão de mundo de cada um e do significado desta transformação para cada ser.

 

8.     Eu escolhi ser o que sou?

Resposta: Cada ser participa ativamente na construção do seu eu. Também participam desta construção o meio em que cada um nasceu e vive, incluindo as pessoas e os acontecimentos que os rodeiam e influenciam sua vida. Há coisas que impõem ao ser humano um condicionamento que pode influenciar em toda sua vida, como uma doença, uma deficiência, uma raça, uma classe social, uma família. Estes fatores ainda não são totalmente compreensíveis para a maioria da humanidade, porque necessitam de reflexão e aprofundamento, mas acabam criando pedras no caminho de cada ser ou facilitando a vida, dependendo do caminho de cada um. Mas em todos os casos, a maneira como a pessoa reage com todos estes fatores fará enorme diferença no resultado final.

 

9.     Só a minha vida importa?

Resposta: Se formos responder esta pergunta de uma maneira profunda, diremos que sim. Porque, se cada um se importar com sua própria vida de maneira séria, responsável, ética, na busca de um comportamento e de uma vida que não crie problemas a nenhum ser vivente, estará se preocupando com si mesmo. Isto é o mesmo que amar o próximo. Porque quem não faz o mal a si mesmo, no sentido profundo, também não estará fazendo mal aos outros. Mas se pensarmos do ponto de vista do ego, da busca incessante de usufruir prazeres, acumular bens, busca de poder, lucros, etc., este caminho pode se inverter e nos levar ao egoísmo e ao individualismo, o que pode ser bom para cada um em certo sentido, mas que pode trazer muitos problemas aos outros seres viventes. A opção é sempre de cada um.

 

 

 

Jul Leardini

Professor de Filosofia (Bacharel e Licenciado em Filosofia pela UFPR)


A TERCEIRA MEDITAÇÃO DE RENÉ DESCARTES - PARTE 8

 




Meditações Metafísicas

 
René Descartes

 

 

Sobre a Terceira Meditação

Parágrafo 17


Parte 8

(ii)

 

PRESSUPOSTOS E CONSEQUÊNCIAS DESSA ARGUMENTAÇÃO

 

 

Algumas livres reflexões

 

 

Quinto Problema

 

            Se não for possível existir algo na ideia que lhe seja própria, adicional àqueles elementos dados pela causa, concluímos que o ser ou o objeto nunca dá nada de si a qualquer coisa.

            Mas será que o homem, quando pensa em algo, realmente não coloca nesse pensamento ou ideia nenhum elemento seu, agregando aos elementos básicos algo mais?

            É difícil admitir a existência de um mundo ou de um Deus de tal natureza, dominado pela mesquinhez, que teria deixado tudo tão pronto, tão reduzido a um jogo de quebra-cabeças sem escapatória, um circuito imutável, ao qual tudo teria que se adequar tão rigidamente, que até os próprios pensamentos fossem reduzidos a meros impulsos repetitivos de nervos condicionados por um motor primeiro, gerador de todas as células repetidas e cristalizadas em tudo.

            Será que precisamos voltar àquele pensamento atrasado, imaginando um Deus-jogador, que brinca com os seres num tabuleiro de xadrez, ou que, com sua gigantesca vaidade, goste de fazer girar em torno de si tantos bonecos?

 

 

(continua) 

 

Bibliografia:

Agostinho. De Libero Arbitrio, livro II, capítulo 3, parágrafos 7, 8 e 9.

Descartes, Rene, Meditações Filosóficas (1ª, 2ª e 3ª meditação), edição Os Pensadores.

Descartes, Rene, Princípios da Filosofia, Editora UFRJ, 2002.


A TERCEIRA MEDITAÇÃO DE RENÉ DESCARTES - PARTE 7

 




Meditações Metafísicas

 
René Descartes

 

 

Sobre a Terceira Meditação

Parágrafo 17


Parte 7

(ii)

 

PRESSUPOSTOS E CONSEQUÊNCIAS DESSA ARGUMENTAÇÃO

 

 

Algumas livres reflexões

 

 

Terceiro problema

 

            Não me convence que a causa deva ter tanta realidade quanto o efeito: um empurrão pode ser a causa de uma queda e não precisa, necessariamente, conter nada do efeito gerado.

 

            Se tal exemplo parecer abstrato demais, cito outro: dizem que “na semente da maçã está a maçã”, mas, se isto é verdade, porque a maçã tem várias sementes, além do corpo farináceo, casca e líquido nela contidos? Não seria o caso então de dizermos que “na maçã está a semente da maçã”? Pois a maçã, além de conter em si as sementes, contêm ainda outras coisas não vistas na semente. Além do mais, alguém já comprovou que a semente surgiu antes da maçã? E se a maçã tiver surgido antes, de algum fenômeno natural, e trouxe consigo a semente?

 

 

Quarto problema

 

            Não pode algo mais perfeito surgir do menos perfeito?

 

            Se assim não for, como explicar o fenômeno Wolfgang Amadeus Mozart que, superando totalmente o pai, também músico, não só era surpreendentemente superior ao genitor, mas também até hoje é considerado insuperável?

 

            Se o exemplo também for pálido, vamos aos objetos em si: o que é mais perfeito, a argila ou a obra de arte dela derivada? O mármore de Carrara é mais perfeito que o Davi de Michelângelo Buonarroti, só pelo fato de conter em si todos os elementos materiais da obra de arte dele derivada?

 

            Não seria o caso de dizermos, não que a causa seja mais perfeita que o efeito, mas simplesmente que a causa contêm todos os elementos do efeito?

 

            Parece-me frágil o encaminhamento de Descartes, e estou mais disposto a crer, pelo que observo no mundo, que, aquilo que ora é entendido como efeito, pode, por outro lado, também ser compreendido como causa e cito o seguinte exemplo: se penso uma cadeira, pelo pensar de Descartes, eu somente poderia pensar nela porque a ideia da cadeira já está em mim, porque essa ideia é a causa do meu pensar e sem essa causa do meu pensar, que é a ideia da cadeira, não poderia haver a cadeira.

 

            Mas isto significa dizer que o objeto cadeira deriva de um modelo de cadeira, já pré-existente em algum lugar, talvez num empíreo, num outro mundo ou em outro plano, mais sutil ou mais etéreo.

 

            Supondo que isto pudesse ser verdade, que autonomia Descartes estaria dando ao pensamento individual, uma vez que tudo que ele pensa já é pré-dado, pré-existente? Será que até o fruto da mais original imaginação também estaria condicionado a estas imagens ideais? O que seria o homem, neste caso, além de um simples repetidor de modelos-formais de tudo que se imagina? Não estaria a vida reduzida a um simples protótipo e, deste modo, o homem transformado em mera máquina repetidora, que meramente reproduz um modelo, não dando nada de si, não passando de uma alavanca de comando que movimenta um pedaço de coisa qualquer, para moldar outro objeto?

 

 

(continua) 

 

Bibliografia:

Agostinho. De Libero Arbitrio, livro II, capítulo 3, parágrafos 7, 8 e 9.

Descartes, Rene, Meditações Filosóficas (1ª, 2ª e 3ª meditação), edição Os Pensadores.

Descartes, Rene, Princípios da Filosofia, Editora UFRJ, 2002.

 


A TERCEIRA MEDITAÇÃO DE RENÉ DESCARTES - PARTE 6

 

A TERCEIRA MEDITAÇÃO DE RENÉ DESCARTES - PARTE 5

 


Meditações Metafísicas

 
René Descartes

Sobre a Terceira Meditação

Parágrafo 17


Parte 5

(ii)

 

PRESSUPOSTOS E CONSEQUÊNCIAS DESSA ARGUMENTAÇÃO

 

Segundo, algumas livres reflexões

 

Primeiro problema

 

            Quando chegamos ao parágrafo 17 da Terceira Meditação, após termos passado pela conclusão de Descartes sobre a primeira evidência clara e distinta, que é o “penso, logo existo”, também considerado por ele como a primeira certeza do método, deparamo-nos com uma tentativa forçada de Descartes de, em prol de uma lógica toda sua, estabelecida pelo método, querer nos fazer crer que, se tudo deriva de uma causa, e se essa causa é anterior ao efeito, ela deve conter todos os elementos do efeito e um pouco mais, talvez.

 

Mas agora vem, a meu ver, o maior problema: Descartes quer nos conduzir à conclusão de que essa causa, que em todas as outras coisas pode ser entendida como agente causal,  fato-gerador, algo-gerador, etc., no caso específico do homem, essa “coisa-geradora” seria por ele designada de Deus.

 

Não quero aqui duvidar da existência de Deus, mas apenas questionar esse frágil pensamento cartesiano, que só pela conclusão de que existe uma causa primeira da existência do homem, essa causa tenha que ser Deus.

 

Se ele chegou a essa conclusão de que para tudo existe uma causa primeira, essa já está nomeada e pode ser qualquer coisa, sendo desnecessário renomeá-la, neste caso, dando-lhe o nome de Deus. Seguindo essa linha de pensamento, a meu ver, poderíamos chamar essa causa ainda de qualquer outra coisa, como: motor-primeiro, causa-geradora, gerador, fato-criador ou tantas coisas semelhantes.

 

Por que chamar de Deus essa causa ou por que deduzir que da simples existência de uma causa primeira essa causa possa ser nomeada como Deus?

 

Sou forçado a crer que, devido ao crescente ateísmo da época, surgido pelo descrédito da igreja católica e a perda de fiéis, Descartes tentou construir uma teoria visando provar, com o instrumento da discórdia bíblica - justamente o intelecto – a existência de Deus, por outro caminho que não o da fé e da crença, tentando solidificar ainda mais essa crença através da filosofia, e de certa maneira, comprometendo a própria trajetória da filosofia, ao misturar assuntos de crença com assuntos da razão.

 

(continua) 

 

Bibliografia:

Agostinho. De Libero Arbitrio, livro II, capítulo 3, parágrafos 7, 8 e 9.

Descartes, Rene, Meditações Filosóficas (1ª, 2ª e 3ª meditação), edição Os Pensadores.

Descartes, Rene, Princípios da Filosofia, Editora UFRJ, 2002.

 


A TERCEIRA MEDITAÇÃO DE RENÉ DESCARTES - PARTE 4

 

Meditações Metafísicas

 
René Descartes

Sobre a Terceira Meditação - Parágrafo 17


Parte 4

(ii)

 

PRESSUPOSTOS E CONSEQUÊNCIAS DESSA ARGUMENTAÇÃO

 

 

Primeiro, o pensamento de Descartes contido na Terceira Meditação

 

Na Terceira Meditação, René Descartes estabelece uma prova a posteriori da existência de Deus, partindo de Sua existência, de Sua perfeição, da ideia de Deus em nós, usando um argumento ontológico e fazendo uma exposição na ordem sintética ao começar por “De Deus, que Ele existe”.

Assim como para os cristãos “Deus É”, para Descartes o “pensamento é”, e Deus sendo a razão (causa) do ser do ego, este seria a razão de conhecer Deus. E o pensamento, sendo sempre pensamento de algo, e o eu sendo o pensamento, diríamos que o eu é o pensamento de Deus.

            Podemos estabelecer três ordens para o pensamento cartesiano nas Meditações:

1ª) Ordem das Razões ou dos Conhecimentos: que é dividida em três partes:   

a)    COISAS EM SI – são as coisas retiradas do mundo objetivo, do senso comum, das opiniões e que são colocadas por Descartes, provisoriamente, num baú das relatividades, ou seja, no lugar das coisas duvidosas, com as quais se deve tomar precauções, para que elas não nos induzam a julgamentos precipitados. Descartes não duvida da verdade das coisas, mas das opiniões.

b)    EGO – O eu, o pensamento, a substância pensante, a substância extensa, Deus, o homem. Há dois caminhos aqui, duas ordens, duas maneiras de estabelecer a relação Deus X homem. A primeira é partindo do homem para Deus e a outra é partindo de Deus para o homem, ambas as maneiras praticadas nas obras de Descartes.

c)    COISAS PARA MIM – é a ordem dos pensamentos, das ideias, que podem ser absolutas (Deus, ser) e relativas (coisas que contêm pouco clareza e distinção, como as coisas provindas dos sentidos).

2ª) Ordem do Ser – o conhecimento metafísico busca o ser e o  conhecimento científico busca o objeto.

3ª) Ordem do Conhecer – coexistência entre o Ego e Deus, ou relação entre Ratio Cognoscendi de Deus (a razão de conhecer Deus) e Ratio Essendi do Ego (razão, ou causa do ser do Ego).

 

            A ideia (logos, pensamento) não precisa do objeto. Ela já é em si. Ao contrário, o objeto não existe sem a ideia. Ela é-lhe imprescindível. Deus é em-si, o homem depende dele. A ideia do homem amolda-se à forma-homem. Essa forma-homem surge da ideia do homem. E a ideia do homem é o homem, na essência. Sua forma contém a essência, que está na ideia do homem. E essa essência surgiu do Espírito, a fonte de todas as ideias e coisas, que para Descartes é Deus. E o papel do conhecimento, nesse contexto, é, para o homem (Ego), levar a Deus, e para Deus, trazer o homem novamente a Si.

 

 

(continua) 

 

Bibliografia:

Agostinho. De Libero Arbitrio, livro II, capítulo 3, parágrafos 7, 8 e 9.

Descartes, Rene, Meditações Filosóficas (1ª, 2ª e 3ª meditação), edição Os Pensadores.

Descartes, Rene, Princípios da Filosofia, Editora UFRJ, 2002.