O PROBLEMA DA DESRAZÃO - Parte 2


O problema da desrazão


Texto base: Doença Mental e Psicologia – Michel Foucault



              (Parte 2)

Foucault, em “A História da Loucura”, considera que o internamento trai a partilha razão e desrazão, deixando-a mal resolvida em função do encantamento pela desrazão, ou seja, a loucura transforma-se aqui em “objeto”.

Já no período Moderno (séculos XIX e XX), com o surgimento da Psicologia Científica, a loucura passa a ser considerada “doença mental” e busca-se a compreensão do problema da loucura. A estrutura ternária homem-loucura-verdade amplia os horizontes de pesquisa do fenômeno.

Essa psicologia, herdando do “Esclarecimento Kantiano” a preocupação de alinhar-se com as ciências da natureza, procura encontrar no homem o prolongamento das leis que regem os fenômenos naturais. (1)

Assim, inspirada pelo modelo orgânico, a psicologia realiza pesquisas sobre as regulações internas do psiquismo: prazer e dor, tendências, sentimentos, emoções, vontade.

Por outro lado, com o surgimento das significações na conduta humana, notadamente com a psicanálise, há uma reviravolta nas ciências humanas, uma vez que Freud, na sua concepção da doença como regressão a um estádio anterior do desenvolvimento afetivo, transforma a análise causal em gênese de significações, a evolução em história e a natureza em meio cultural.

Se no passado o louco era tido como “possuído”, “pervertido”,  “desregrado”, “furioso”, “melancólico”, “extravagante”, etc., sem qualquer suporte médico ou científico adequado,  ignorado e preso aos rígidos conceitos religiosos, é a partir do século XIX que essa situação tende a mudar, quando surge a indignação contra o tratamento inumano dado aos loucos, uma vez que ele já não oferecia nenhum risco efetivo à sociedade. Foucault diz que aqui teve início a “naturalização” da razão, e a loucura passou a ser considerada um “acidente humano”, uma doença mental e precisaria, como tal, de tratamento adequado. A essa “humanização da loucura” Foucault dá o nome de “Era Antropológica”.



Referências Bibliográficas:
(1) Foucault, Michel, Problematização do Sujeito: Psicologia,  Psiquiatria e Psicanálise - A Psicologia de 1850 a 1950, Coleção Ditos e Escritos;
(2) Foucault, Michel, Doença Mental e Psicologia, cap. V, pág. 75.
(3) Foucault, Michel, Problematização do Sujeito: Psicologia,  Psiquiatria e Psicanálise - A Psicologia de 1850 a 1950, Coleção Ditos e Escritos, edição de 1957, página 122, introdução;
(4) Foucault, Michel, Problematização do Sujeito: Psicologia,  Psiquiatria e Psicanálise - A Psicologia de 1850 a 1950, Coleção Ditos e Escritos, edição de 1957, página 17;
(5) Foucault, Michel, Problematização do Sujeito: Psicologia,  Psiquiatria e Psicanálise - A Psicologia de 1850 a 1950, Coleção Ditos e Escritos, edição de 1957, página 208;


O PROBLEMA DA DESRAZÃO




O problema da desrazão


Texto base: Doença Mental e Psicologia – Michel Foucault)



            (Parte 1)


Foucault nos informa que até o século XIX, a experiência com a loucura no ocidente assumia formas variadas.

Na verdade, desde os gregos clássicos já se pensava no problema da loucura e buscava-se decifrar os seus enigmas e a sua cura.

Na Idade Média já havia locais reservados aos loucos considerados curáveis.

Na Renascença (século XVI), o louco era considerado figura exótica, vivia no meio das pessoas, se relacionava com elas e podemos dizer, não havia um peso tão forte de juízo moralizante sobre ele, apesar de num passado recente, já ter sido excluído do convívio social. Mas ainda imperava a rejeição da loucura e uma certa repulsão a sua figura.

No período denominado Clássico (séculos XVII e XVIII) a loucura transformar-se-á em doença, exigindo-se o internamento do louco para purificação do espaço social, ligando-se a isso os conceitos de culpa e castigo, derivando um efeito moralizante sobre o dito louco. Aqui o louco passa a ser considerado uma pessoa com minoridade jurídica e não responsável por seus atos, numa clara distinção entre “ser e não ser”, numa cisão profunda entre “razão e desrazão”, num movimento de reação e exclusão do ser-louco da sociedade, o qual passa a ser considerado um “não-ser”, ou seja, uma essência humana desviada. A experiência social com o louco nesse período considerava que alienação e maldade eram cúmplices e andavam juntas, e que uma vontade má poderia levar o sujeito ao internamento, mesmo se sua razão fosse sã. Considerando-se que havia uma liberdade de decisão, o peso recairia sobre a vontade, transformando a questão num problema de ordem ética.

No campo jurídico, havia um estabelecimento de limites de graus de comportamento, os quais, transpostos, colocariam o indivíduo numa situação de risco de exclusão pelo internamento.

Em meados do século XVII, essa exclusão do louco da sociedade vai ocasionar uma brusca mudança, com a criação em toda a Europa de casas de internação onde não eram internados apenas os ditos “loucos”, mas também qualquer indivíduo considerado “diferente” ou “problemático”, em resumo, todo aquele que à sua maneira altera a ordem vigente e os padrões de comportamento da época.

O problema é que essas instituições não eram de ordem médica, mas apenas tinham por funções isolar essas pessoas da sociedade e um certo assistencialismo, não sem a exploração do trabalho forçado e dos lucros advindos dele, além de fiscalização e imposição moral, controladas através de castigos. Percebe-se claramente que esse internamento/isolamento estava ligado à necessidade de manter uma certa aparência de ordem, sanidade e limpeza dos centros urbanos. Essa época de internamento será longa, trazendo inúmeras injustiças e desumanidades, criando a impossibilidade de expressão do louco, o que somente viria a acontecer quando Freud levantaria essas temas através de suas obras e seus trabalhos. Mais precisamente, quando Freud faz a descoberta do sentido, “trata-se de retomar um exame mais rigoroso da realidade humana” (4), conforme Foucault.

(continua)


Referências Bibliográficas:

(1) Foucault, Michel, Problematização do Sujeito: Psicologia,  Psiquiatria e Psicanálise - A Psicologia de 1850 a 1950, Coleção Ditos e Escritos;
(2) Foucault, Michel, Doença Mental e Psicologia, cap. V, pág. 75.
(3) Foucault, Michel, Problematização do Sujeito: Psicologia,  Psiquiatria e Psicanálise - A Psicologia de 1850 a 1950, Coleção Ditos e Escritos, edição de 1957, página 122, introdução;
(4) Foucault, Michel, Problematização do Sujeito: Psicologia,  Psiquiatria e Psicanálise - A Psicologia de 1850 a 1950, Coleção Ditos e Escritos, edição de 1957, página 17;
(5) Foucault, Michel, Problematização do Sujeito: Psicologia,  Psiquiatria e Psicanálise - A Psicologia de 1850 a 1950, Coleção Ditos e Escritos, edição de 1957, página 208;

MATÉRIA E MEMÓRIA - Parte 3 (final)



MATÉRIA E MEMÓRIA

ENSAIO SOBRE A RELAÇÃO DO CORPO COM O ESPÍRITO

de Henri Bergson

(parte 3 – final)

Capítulo 4 – DA DELIMITAÇÃO E DA FIXAÇÃO DAS IMAGENS. PERCEPÇÃO E MATÉRIA. ALMA E CORPO.

O corpo teria a função de limitar a ação do espírito?

Parece que Bergson nos quer sugerir isto, ao dizer que o corpo selecionaria as nossas representações.

Mas o espírito não teria a intenção de alçar vôo e libertar-se das amarras do corpo quando busca a fantasia e a imaginação?

Qual é afinal o papel do corpo na vida do espírito?

Haverá possibilidade de uma união, afinal, entre o corpo e a alma?

Bergson rejeita tanto o materialismo quanto o idealismo, o primeiro porque sustenta que o inextenso deriva do extenso, o segundo o contrário. Coloca, para buscar a solução do problema e uma reaproximação das duas teses, a teoria da percepção pura, de um lado, e a da memória pura, do outro.
A memória não seria uma emanação da matéria, mas esta derivaria parcialmente da memória.

O filósofo tenta estabelecer um elo entre empirismo e dogmatismo, dizendo discordar apenas no fato de o primeiro prender-se mais à matéria e o segundo, à forma. Em contraponto ao empirismo, Bergson  diz que o erro do empirismo é justamente em substituir a experiência verdadeira – que seria, segundo ele, aquela que nasce do contato imediato do espírito com seu objeto – por uma experiência apenas material. O dogmatismo, por sua vez, ao buscar uma síntese fora da intuição, alcançará sempre uma arbitrariedade na forma.

A relatividade do conhecimento, estabelecida pela racionalidade, poderia ser superada restabelecendo a intuição pura para uma percepção mais clara do real.
A solução que Bergson cria para firmar suas convicções da unidade corpo e alma, entre matéria e espírito é a formulação dos conceitos “imagem e percepção”, no plano material e “lembrança e memória”, no plano espiritual.
Assim, o elo de ligação entre o material e o espiritual seria a memória. A matéria seria uma imagem e dentro da matéria a imagem que conhecemos melhor seria o nosso próprio corpo. E é através deste corpo que podemos reconhecer o mundo, sendo, por isso, esse corpo, o instrumento que nos possibilita a ligação com a matéria, por ser, ele mesmo, desta mesma espécie, e sem ele o espírito não conseguiria ligação com o mundo físico.

Por outro lado, a percepção também seria algo puramente material, por nos mostrar a existência das coisas.
A memória põe em ação as lembranças. Estas, por sua vez, têm a função de construir a vida, ao reunir passado, presente e futuro, e nesse arcabouço de reminiscências, construir todo o referencial de experiências e vivências humanas.

As ações de liberdade movimentam a vida. A vida é um dinamismo constante capaz de transformar e criar o novo, mas tudo está coligado, nada é independente, nada é isolado. Corpo e alma, matéria e espírito, lembrança e percepção, através da intercomunicação e da interdependência constroem a experiência vivencial.
Percebemos que para Bergson “A matéria é a realidade que se desfaz, e vida é a realidade que se faz”.