O problema da
desrazão
(Texto
base: Doença Mental e Psicologia – Michel Foucault)
Parte 3 - Final
Ao nos traçar a constituição histórica da doença mental (2),
Foucault, no capítulo 5 nos diz:
“Nunca a psicologia poderá dizer a
verdade sobre a loucura,
já que é esta que detém a verdade da
psicologia.”
Quem detém a verdade de algo precisará ser acessado de
alguma forma, para se obter dele as diretrizes ou premissas que levarão a essa
verdade. Se a psicologia, ao longo de séculos, nas suas tentativas de
compreender o fenômeno da loucura, ora liberou o louco para o convívio social
entre os “normais”, ora o trancafiou como ser não bem quisto socialmente,
incluindo aqui não só os loucos, mas até os portadores de doenças venéreas, os
libertinos e criminosos e ora o separou da sociedade numa casa de psiquiatria,
considerando-o doente mental que precisaria não de torturas e tratamento de
choque, mas de cuidados especiais, ainda assim não teve acesso real à natureza
ou essência do portador da loucura, leva-nos a pensar realmente que a
psicologia não tem a solução para a loucura. Talvez nem possamos dizer que haja
um “problema da loucura”, uma vez que ela poderá se constituir numa saída ou
simples contraposição possível e/ou necessária, como compensação ao peso da
“normalidade”.
Aqui, razão e desrazão confrontam-se no campo de batalha que
é a vida, e assim como num campo de batalha tradicional, duas imposições se
contrapõem, na busca da vitória, que será obtida sempre a duras penas e com um
saldo desastroso.
E nessa batalha secular, sendo a razão o modelo, houve a
tentativa de classificar a desrazão, o que até hoje não deu em nada
satisfatório. A própria classificação de doença mental, a mais moderna delas,
ainda não nos aproximou da verdade da desrazão, apenas a catalogou,
sobrepujando-a.
Por isso, Foucault busca elaborar uma arqueologia das
ciências humanas, abandonando a discussão ontológica, epistemológica e
psicológica, propondo um certo abandono do “normal” para se ir em busca do
“anormal”, na tentativa de priorizar a loucura para estudo, sendo necessário
então deixar de falar do louco para ir vê-lo de perto. Não importaria mais as
discussões em torno da origem do homem, se filho da natureza ou de Deus. Seria
necessário uma suspensão do juízo ou do discurso para aproximar-se da essência
da loucura.
Foucault, nesse sentido, afronta Freud, Piaget e o
Behaviorismo, dizendo que não há evolução na Psicologia, que seus estudos
seriam ilusórios e invencionices. Que o seu objeto não existiria. Propõe uma
reconstrução da Psicologia com base na prática.
Em seguida, superando a visão marxizante, Foucault diz que a
justificativa para separar o louco do não-louco não pode ser empírica. Pois se
não há formas empíricas que definam a loucura em si mesma, a dualidade ou cisão
histórica entre louco e não-louco não se legitima.
Portanto, ao invés de falarmos em essência da sanidade ou
insanidade, seria melhor referir-mo-nos à “proximidade da sanidade” ou à
“proximidade da insanidade”.
A Psicologia, ao humanizar a loucura, como diz Foucault,
nunca poderá dizer a verdade sobre ela.
Quando Foucault esclarece sobre a
história paradoxal da contradição da Psicologia, entre 1850 e 1950, período em
que apoiou-se sobre dois postulados filosóficos (3), tendo que renunciar a eles
devido à perseguição do ideal de rigor e de exatidão das ciências na natureza,
parece nos querer dizer que a psicologia, nesse período, estaria ainda
desencontrada de si mesma, e que ao encontrar um novo status do homem, que
passaria a não ser mais da ordem da natureza, obrigou-se a si própria a uma
renovação total, adquirindo também pra si um novo status, o de Ciências
Humanas.
Poderíamos
supor que agora, a Psicologia, estabelecendo novas práticas como educação,
medicina mental, organização de grupos, poderia chegar mais perto da
compreensão do homem, mas o fato é que ela foi construída em cima do anormal,
do patológico, do conflituoso. Ela não se originou do normal, do adaptativo, do
organizado. Em sua luta por dominar essas grandes contradições, e em certa
medida ainda apegada aos métodos das ciências naturais, ela cambaleia na busca
das respostas que esclareceriam os porquês de sua própria origem.
Pelas palavras de Badiou, relatadas no
livro de Foucault (5), percebe-se a situação da psicologia, desde a década de
1965, quando ele foi perguntado sobre o que faria se, estando em uma sala de
aula de filosofia, tal como ela é atualmente, tivesse que ensinar algo da
psicologia, ao que ele respondeu:
“ (...) comprar-me a máscara mais perfeita que eu
pudesse imaginar e a mais diferente de minha fisionomia normal, a fim de que
meus alunos não me reconhecessem. Eu me esforçaria, como Anthony Perkins em
Psicose, em fazer uma voz completamente diferente, de modo que nada da unidade
de meu discurso pudesse aparecer. (...) “
Referências Bibliográficas:
(1) Foucault,
Michel, Problematização do Sujeito: Psicologia,
Psiquiatria e Psicanálise - A Psicologia de 1850 a 1950, Coleção Ditos e
Escritos;
(2) Foucault,
Michel, Doença Mental e Psicologia, cap. V, pág. 75.
(3) Foucault,
Michel, Problematização do Sujeito: Psicologia,
Psiquiatria e Psicanálise - A Psicologia de 1850 a 1950, Coleção Ditos e
Escritos, edição de 1957, página 122, introdução;
(4) Foucault,
Michel, Problematização do Sujeito: Psicologia,
Psiquiatria e Psicanálise - A Psicologia de 1850 a 1950, Coleção Ditos e
Escritos, edição de 1957, página 17;
(5) Foucault,
Michel, Problematização do Sujeito: Psicologia,
Psiquiatria e Psicanálise - A Psicologia de 1850 a 1950, Coleção Ditos e
Escritos, edição de 1957, página 208;